quarta-feira, 11 de março de 2015

Tadeu Sarmento


"Para mim, calçar os sapatos da mulher que se ama é a imagem do próprio amor. Tem aquele filme baseado no Factótum do Bukowski. Lá pelo final, Lili Taylor acompanha Matt Dillon até a empresa da qual ele foi rapidamente demitido, para buscar um cheque pelo único dia trabalhado. Ela se veste a caráter para ir: com vestido de passeio puído e saltos altos que machucam seus pés. Ambos caminham conversando sobre o que farão com o dinheiro: comerão, comprarão bebida, serão felizes, terão seu dia de rei e rainha em meio à miséria e ao desespero. Mas só que o cheque não está lá. O cheque, senhores, nunca estará lá. Então eles voltam, cabisbaixos e vencidos e, quatro passos adiante, ela reclama dos sapatos machucando seus tornozelos. Então ele a senta no degrau de uma escada, descalça-a, para depois calçá-la com seus sapatos de gigante. E vão embora: ele apenas de meias e ela, calçando um par de sapatos dez números acima do seu, lembra uma bailarina de caixinha de música desengonçada como um palhaço entortado. Essa é a imagem do amor: um gesto súbito de delicadeza em meio a um deserto de sofrimento. Um gesto apenas, um clarão dentro do qual lembramos que, talvez, sejamos um pouco mais que animais com enfeites natalinos no cérebro. Mas logo o clarão passa, o amor acaba, e caminhamos de mãos dadas pelo dia desesperançado. Esse é o filme de nossas vidas, com o agravante de que todos os figurantes morrem antes do final feliz. Mas sempre haverá sapatos. Sempre" - Tadeu S.


Imagem: Vladimir Kush : The Fashionable Bridge